segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Assalto

Olhei para um lado, olhei para o outro. Fui. Tudo assim mesmo, poucas palavras e poucos pensamentos. Não tinha tempo. Cara, já levei umas porradas hoje. Se eu for falar da vida inteira, tudo junto, você poderia até pensar que eu já morri, mas não. Continuo na luta. Sou um guri mesmo, que nem o do Chico. 

Minha mãe não sabe de nada. Eu comecei a roubar depois da escola. A escola continua e lá e eu continuo roubando. Tá bom, já disse que não ia ficar pensando muito, mas me distraí. Eu olhei mesmo pra um lado, pro outro e fui. A bolsa tava lá, dando mole, aberta. A dona não tava nem aí. Fui lá!

Atravessei a rua correndo. A dona, sozinha, nem me viu. Facinho. Então, sem pensar muito, puxei rápido a bolsa, como fiz nas outras vezes. A parada prendeu, puxei de novo e a mão não dela não soltava. 


Olhei puto pra dona e me deparei com enormes espelhos azuis. Me olhavam, mas não com o medo que as pessoas geralmente sentem de mim. Vi ali, por algum motivo, compreensão e pena. Como aqueles olhos podiam me entender?! Sabe nada da minha vida! Tava ficando louco? Porra, não! Ela não podia entender quem eu era. Quem é ela pra me julgar? Nem minha mãe pode me julgar.

E eu até comecei a ficar pensando mesmo. O que eu ia fazer com ela me olhando. Durou pouco e, se eu fosse ficar lá filosofando, ia até começar a dizer que os olhos grandes azuis dela eram isso mesmo, dois olhos azuis grandes de gente grande, olhos grandes de sangue azul, vermelhos de raiva por dentro. Cara, mas não dá tempo. Se eu achar que é tudo casa grande e senzala fico sem a bolsa que era dela. Agora é minha. Os documentos posso até jogar por aí, mas a bolsa é minha.

Resolvi cheirar uma carreira pra sair daquela viagem louca. Tinha que subir o morro para comprar o pó. Mas, se eu chegasse na favela com bolsa roubada, geral ia falar que eu tinha roubado no asfalto. E, aí, mermão, fudeu! Na favela, também tem lei. Se soubessem dessa parada, iam me dar uns tiros e jogar meu corpo na vala. Porra, quero morrer desse jeito não. Não ia dar nem tempo de me despedir da minha avó.

Parei de pensar muito, catei o dinheiro e o celular da dona e fui pra outra boca comprar meu pó. Cara, cheirei tudo! Depois que o efeito passou, me veio na mente a imagem da dona e dos olhos azuis. Comecei a ficar bolado com essa parada rodando minha cabeça. Sabia que tinha que me livrar da porra dos documentos e da bolsa pra não lembrar mais da velha.

Pra não ficar de bobeira com a bolsa de couro da madame, dei uma lavada nela. Minha avó é meio cega. Acabou que eu dei a bolsa pra ela mesmo. Minha vó ficou lá toda feliz de bolsa nova. Eu, por um tempo achei que tinha me livrado daquela sensação estranha, mas agora toda vez que vejo a bolsa e a minha avó, me lembro daqueles olhos azuis. Será mesmo que eles me entendiam?

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

No calor

Era uma tarde de verão como outra qualquer. O calor intenso derretia até os nossos pensamentos. E a volta para casa era cada vez mais tortuosa. O ônibus cheio e quente; o trânsito, estático. E o desespero... este era incontrolável. A vontade era de gritar, correr, desaparecer. Embora aquele fosse mais um dia de verão no Rio de Janeiro, havia um sentimento forte, que fazia com que eu reparasse em todas as coisas com um olhar diferente; um olhar desesperador.

Vivendo em uma long and winding road com um calor dos infernos, era assim que eu me sentia naquelas horas. O dia já não era tão importante, pois o calor tomava conta de tudo. Minha indecisão ia aumentando, criando uma névoa fechada. E a minha dúvida só diminuía quando eu ficava com raiva das pessoas em trajes de banho, enchendo os ônibus e as ruas de areia. A inveja só servia para que eu não enlouquecesse de vez com os meus pensamentos. Já em casa, de saco cheio da situação, apenas lavei o rosto e fui até lá resolver meus problemas.

Não sei se foi o calor, não sei se foi a angústia de ver a situação resolvida. Só sei que as coisas não podiam continuar do jeito que estavam. Peguei o telefone, com os dedos trêmulos e indecisos. Respirei fundo. O suor escorria livremente pelos meus poros. Disquei aquele número que eu já sabia de cor.
Ele atendeu:

- Oi, querida, tudo bem?
- Tudo. Preciso falar com você.
- Eita! Diz logo então, vai.
- Não posso mais continuar assim, não posso mais mentir, não posso manter nosso relacionamento.
- Por quê????
- Sou lésbica.
- Vai tomar um banho e esfriar a cabeça, amor.
- Já tomei.
- tu tu tu tu...

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Alice, acorda!

Esse conto é sobre uma menina que percebe as sutilezas de cada coisa que acontece a sua volta. Ela vive em um mundo onde passarinhos falam, as paredes escutam e os ventos trazem boas notícias. Mas, por ora, não tem batido nem um brisa.

A menina nunca vivia só. E mesmo que não houvesse ninguém no quarto, onde ela gostava de passar horas trancada, sempre havia alguém com quem conversar. O Sr. Abajur contava histórias de Paris. As canetas, fofoqueiras, falavam da vida alheia. Mas sua melhor amiga era a cama. Vez por outra, a mãe da menina passava e ouvia a voz solitária da menina, a conversar com o invisível, e achava que era coisa da idade. Mas quanto mais o tempo passava, o comportamento da menina não mudava. E a mãe começava a se preocupar.

Alice era bastante elogiada em tudo o que fazia. Ela dizia que o ingrediente principal para uma coisa dar certo era o amor. Ela amava, e como amava! Dona cama que o diga, passava horas e horas escutando as histórias de Alice agarrada ao Sr. Travesseiro, que no final das contas sempre acabava ensopado com as lágrimas de chocolate que escorriam de seus olhos. "Amo o que não existe", ela dizia. E isso preocupava muito sua mãe.

Médicos, psicólogos e até psiquiatras a menina visitou. Mas todos com a mesma resposta: "saudável e inteligente sua filha é, Dona Mariquinha. Não tem nada de errado com a moça. Sonhar faz parte e a imaginação é o maior dom que ela tem".

Mariquinha não acreditava muito em imaginação. Apesar de ser fruto de uma senhora muito imaginativa. Afinal, como alguém pode escolher tal nome para a própria filha sem muita criatividade? A preocupação exagerada, cada vez mais frequente em relação a filha, fez com que Mariquinha não percebesse certos sinais. Objetos domésticos eram os novos amigos da Alice. Não era só um abajur, nem uma cama, muito menos um travesseiro. Eram senhores e senhoras, com pompa e intimidade ao mesmo tempo.

Mesmo acreditando que tudo isso não passava de mera ficção criada pela filha, Mariquinha não estava aguentando a pressão de toda essa imaginação. Muitas vezes, não sabia o limite entre o que era real e o que era ficcional. Por outro lado, Alice, presa em sua imaginação, também passava pelo mesmo dilema. Se tudo aquilo que ela havia criado não poderia ser considerado real, afinal, o que poderia? E se não poderia viver a sua realidade, qual seria a razão para viver?

Alice confessou sua angustia à mãe, que, por sua vez, também confessou o que sentia em relação aos passarinhos falantes e objetos dançantes. Então, como saída para os seus problemas, Alice e Mariquinha resolveram viajar. Viajar para o eterno. Esse é um conto que não é de fadas, que não é real, mas fala de uma parte da história que ninguém nunca contou: o dia em que Alice morreu.


O conto de hoje teve a participação da Amanda (@). Ela é assídua no twitter e divide um blog com a Lara Spinoza (@laarices), nossa colega de contos.



segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Cego

Meu nome é Paulo e tenho vinte anos. Nasci com uma  doença que comprometeu a minha  visão desde que nasci.

Meu maior desejo era poder descobrir as cores, as formas, a beleza das coisas. Poderia crescer triste e frustrado por isso. No entanto, este desejo fez com que eu desenvolvesse uma grandiosa habilidade: a pintura.

Sabe quando algo te completa?  Então, é assim que me  sinto ao pintar quadros com  meus sentimentos e sentidos mais aguçados. Mas tenho um sonho que gostaria de realizar, fazer a pintura de minha amada e conseguir olhar para ela e ver em seu rosto a expressão de felicidade. Sei que gostam dos meus quadros, pois sinto isso.

Mas acredito que não tem nada tão prazeroso quanto ver nos rostos das pessoas que a sua arte produz felicidade. Enquanto esse milagre não acontece, não me lamento, pois procuro descobrir prazeres de outras formas. 


Sou feliz, pois tenho minha arte, meu amor, minha família e é por conta disso que estou vivo e vivendo. Pintar é um mundo de sonhos e, enquanto imagino as cores, ninguém enxerga mais do que eu.

Mas quero viver na realidade, não em um conto de fadas. Pois nem toda dificuldade é bem vista pela sociedade, existem preconceitos que deveriam ser quebrados. 


Tá aí um outro sonho meu, e esse não precisa de milagre e sim de pessoas que tenham, no mínimo, empatia. E não me venham com mensagens de final de novela. Não preciso disso para viver a vida.


O conto de hoje teve a participação da Yukari, ex-colega de trabalho. Se quiser saber mais sobre ela, clique aqui.