Olhei para um lado, olhei para o outro. Fui. Tudo assim mesmo, poucas palavras e poucos pensamentos. Não tinha tempo. Cara, já levei umas porradas hoje. Se eu for falar da vida inteira, tudo junto, você poderia até pensar que eu já morri, mas não. Continuo na luta. Sou um guri mesmo, que nem o do Chico.
Atravessei a rua correndo. A dona, sozinha, nem me viu. Facinho. Então, sem pensar muito, puxei rápido a bolsa, como fiz nas outras vezes. A parada prendeu, puxei de novo e a mão não dela não soltava.
Olhei puto pra dona e me deparei com enormes espelhos azuis. Me olhavam, mas não com o medo que as pessoas geralmente sentem de mim. Vi ali, por algum motivo, compreensão e pena. Como aqueles olhos podiam me entender?! Sabe nada da minha vida! Tava ficando louco? Porra, não! Ela não podia entender quem eu era. Quem é ela pra me julgar? Nem minha mãe pode me julgar.
E eu até comecei a ficar pensando mesmo. O que eu ia fazer com ela me olhando. Durou pouco e, se eu fosse ficar lá filosofando, ia até começar a dizer que os olhos grandes azuis dela eram isso mesmo, dois olhos azuis grandes de gente grande, olhos grandes de sangue azul, vermelhos de raiva por dentro. Cara, mas não dá tempo. Se eu achar que é tudo casa grande e senzala fico sem a bolsa que era dela. Agora é minha. Os documentos posso até jogar por aí, mas a bolsa é minha.
Resolvi cheirar uma carreira pra sair daquela viagem louca. Tinha que subir o morro para comprar o pó. Mas, se eu chegasse na favela com bolsa roubada, geral ia falar que eu tinha roubado no asfalto. E, aí, mermão, fudeu! Na favela, também tem lei. Se soubessem dessa parada, iam me dar uns tiros e jogar meu corpo na vala. Porra, quero morrer desse jeito não. Não ia dar nem tempo de me despedir da minha avó.
Parei de pensar muito, catei o dinheiro e o celular da dona e fui pra outra boca comprar meu pó. Cara, cheirei tudo! Depois que o efeito passou, me veio na mente a imagem da dona e dos olhos azuis. Comecei a ficar bolado com essa parada rodando minha cabeça. Sabia que tinha que me livrar da porra dos documentos e da bolsa pra não lembrar mais da velha.
Pra não ficar de bobeira com a bolsa de couro da madame, dei uma lavada nela. Minha avó é meio cega. Acabou que eu dei a bolsa pra ela mesmo. Minha vó ficou lá toda feliz de bolsa nova. Eu, por um tempo achei que tinha me livrado daquela sensação estranha, mas agora toda vez que vejo a bolsa e a minha avó, me lembro daqueles olhos azuis. Será mesmo que eles me entendiam?